Hepatite misteriosa: o que especialistas dizem sobre a doença que atinge crianças pelo mundo
OMS descarta relação do surto com vacina contra Covid
Por Andréa Pelogi
O Brasil tem hoje 64 casos suspeitos da hepatite misteriosa em crianças. No mundo, já são 614 casos notificados - entre eles, 14 óbitos. Mas o que difere essa doença das outras hepatites? Convidamos os docentes André Ibrahim David, Disciplina de Técnica Operatória e Experimental, e Maria Isabel de Moraes Pinto, da Disciplina de Infectologia Pediátrica, ambos da Escola Paulista de Medicina - Unifesp/EPM, para abordar o assunto.
O que é hepatite?
Hepatite designa qualquer inflamação do fígado por causas diversas, sendo as mais frequentes as infecções pelos vírus tipo A, B e C e o abuso do consumo de álcool ou outras substâncias tóxicas (como alguns remédios).
Na maioria dos casos, a hepatite é causada por uma infecção viral, e existem diferentes vírus reconhecidos como agentes causadores da doença.
Quais são os sintomas da hepatite?
A hepatite aguda apresenta diferentes sintomas: gastrointestinais, como diarreia ou vômito, febre e dores musculares, mas o mais característico é a icterícia – uma coloração amarelada da pele e dos olhos. Outros sintomas: fezes amareladas, cinzentas e esbranquiçadas, urina escura, dor na região superior da barriga e perda de apetite. Nestes casos, deve-se procurar atendimento médico imediatamente.
Como identificar o tipo de hepatite?
Exames de sangue são úteis para identificar o tipo de vírus causador da hepatite. A sorologia pode detectar e diferenciar as hepatites A, B, C, D ou E. Além da sorologia, exames que determinam o funcionamento do fígado, tais como as transaminases AST e ALT, são indicados.
Como a hepatite é transmitida?
A hepatite pode ser transmitida de diversas formas e as principais formas de contágio incluem:
Tipo |
Transmissão |
A |
A transmissão é fecal-oral, por contato entre indivíduos ou por meio de água ou alimentos contaminados. É causada pelo vírus HAV. |
B |
A transmissão ocorre através de relações sexuais sem preservativo com pessoa infectada, da mãe infectada para o filho durante a gestação, parto ou amamentação e pelo compartilhamento de objetos contaminados (Uso de materiais não esterilizados para fazer tatuagens, piercings ou para fazer a unha, por exemplo). É causada pelo vírus VHB. |
C |
A transmissão ocorre por meio de contato com sangue contaminado, seja por transfusão de sangue, acidente com material contaminado ou por meio de compartilhamento de drogas injetáveis. É causada pelo vírus VHC. |
D |
A transmissão ocorre da mesma forma da hepatite B. É causada pelo vírus HDV. |
E |
A transmissão é fecal-oral, por contato entre indivíduos ou por meio de água ou alimentos contaminados. Sua maior incidência ocorre nos continentes africano e asiático. É causada pelo vírus HEV. |
Além disso, a hepatite pode também ser consequência do abuso de álcool, drogas ilícitas e medicamentos ou ser consequência de doenças autoimunes. Assim, o tratamento pode variar de acordo com a causa da hepatite, gravidade dos sintomas e forma de contágio, podendo ser indicado pelo médico que a pessoa fique em repouso, beba bastante água e tenha uma alimentação equilibrada e com pouca gordura.
Quais vacinas estão disponíveis para a hepatite?
As vacinas contra as Hepatites do tipo A e B são consideradas a medida mais eficaz para evitar casos graves e mortes pela doença. Depois de ser imunizado, você está protegido por toda vida.
A hepatite A tem vacina, que reduz a chance de infecção. É segura e está disponível no Sistema Único de Saúde (SUS), fazendo parte do Calendário Nacional de Vacinação para crianças de 15 meses a 05 anos incompletos (4 anos, 11 meses e 29 dias).
Em 2021, a cobertura contra o vírus tipo B foi de 68,55% em crianças com menos de 30 dias de vida e de 75,95% em crianças menores de um ano de idade. A cobertura contra o tipo A da doença foi de 76,46%. A meta de cobertura ideal preconizada pelo Programa Nacional de Imunizações (PNI), do Ministério da Saúde, é de 95%.
Para o tipo C não há vacina, mas existe tratamento, que também é disponibilizado pelo SUS e evita complicações. A autorização para dispensação de medicamento será realizada pelo Sistema de Controle Logístico de Hepatites Virais (SICLOM – HV) do Ministério da Saúde com a necessidade de preenchimento e entrega de formulários próprios para este sistema (Formulário de Cadastro e Formulário de Solicitação de Medicamento).
O que é a hepatite misteriosa?
Um tipo de hepatite aguda de origem desconhecida está acometendo crianças em ao menos 20 países. Ela pode ser muito grave em alguns casos, e não tem relação direta com os vírus conhecidos da hepatite, e 7% dos casos exigiram transplante de fígado.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), até 29 de abril, mais de 200 casos haviam sido reportados no mundo, a maioria (163) no Reino Unido. Houve relatos na Espanha, Israel, Estados Unidos, Dinamarca, Irlanda, Holanda, Itália, Noruega, França, Romênia, Bélgica e Argentina - a maioria em crianças de um mês a 16 anos, com uma morte relatada. No Brasil, sete casos suspeitos estão sob investigação.
A OMS afirma ainda investigar a origem e as causas da doença, mas descarta relação com as vacinas contra Covid-19.
Casos no Brasil
O número de casos no Brasil em investigação é de 64 casos segundo informações do Ministério da Saúde no dia 23 de maio. A doença já chegou na maioria dos Estados brasileiros, a maioria em São Paulo com 24 casos.
Hipóteses da causa da hepatite misteriosa?
Adenovírus
O adenovírus foi detectado em pelo menos 74 casos no começo da casuística mundial; em 18 casos, testes moleculares identificaram a presença do adenovírus tipo 41F e em 20 foi identificada a presença do SARS-CoV-2. Além disso, em 19 houve uma coinfecção por SARS-CoV-2 e adenovírus.
Os vírus comuns que causam hepatite viral aguda (vírus da hepatite A, B, C, D e E) não foram detectados em nenhum desses casos. Viagens internacionais ou conexões em outros países não foram identificadas como fatores da doença. Sua real causa ainda está sob investigação pela OMS.
Adenovírus 41F
Uma pesquisa realizada pelo Centro Europeu de Prevenção e Controle de Doenças (ECDC) apontou uma possível associação entre os recentes casos de um tipo misterioso de hepatite e infecções causadas pelo adenovírus 41F. O microrganismo foi identificado na maioria dos casos registrados no Reino Unido (72%), na Europa (mais de 60%) e nos Estados Unidos (mais de 50%). O adenovírus 41F geralmente se espalha através de matéria fecal, o que torna fundamental a lavagem adequada das mãos, principalmente após as trocas de fraldas e ida ao banheiro.
Superantigenos do SARS-CoV-2
O SARS-CoV-2 foi identificado em 18% dos casos relatados no Reino Unido e 11 (11%) dos 97 casos na Inglaterra com dados disponíveis testados positivos para SARS-CoV-2 na admissão; outros três casos tiveram resultado positivo nas oito semanas anteriores à admissão. Dois testes sorológicos contínuos provavelmente produzirão um número maior de crianças com hepatite aguda grave e infecção anterior ou atual por SARS-CoV-2. Onze dos 12 pacientes israelenses foram relatados como tendo COVID-19 nos últimos meses e a maioria dos casos relatados de hepatite ocorreu em pacientes muito jovens para serem elegíveis para vacinas COVID-19.
A infecção por SARS-CoV-2 pode resultar na formação de reservatórios virais. A persistência viral de SARS-CoV-2 no trato gastrointestinal pode levar à liberação repetida de proteínas virais pelo epitélio intestinal, dando origem à ativação imunológica.
Essa ativação imunológica repetida pode ser mediada por um motivo de superantígeno dentro da proteína spike SARS-CoV-2 que se assemelha à enterotoxina estafilocócica B, desencadeando uma ativação ampla e inespecífica de células T. Essa ativação de células imunes mediada por superantígenos foi proposta como um mecanismo causal da síndrome inflamatória multissistêmica em crianças.
Quais são os sintomas e o tratamento?
Muitos casos de hepatite aguda apresentaram sintomas gastrointestinais, incluindo dor abdominal, diarreia e vômitos e aumento dos níveis de enzimas hepáticas (aspartato transaminase (AST) e alanina aminotransaminase (ALT) acima de 500 UI/L), além de icterícia e ausência de febre.
O tratamento atual busca aliviar os sintomas, manejar e estabilizar o paciente se o caso for grave. As recomendações de tratamento podem ser aprimoradas assim que a origem da infecção for determinada.
Por que o surto de hepatite em crianças é considerado incomum? É devido ao adenovírus?
Em muitos casos, a infecção por adenovírus foi detectada nas crianças afetadas, e a ligação entre os dois está sendo investigada como uma das hipóteses para a causa da doença.
O adenovírus é um vírus comum que pode causar sintomas respiratórios, vômitos e diarreia, e, no geral, a infecção por tais vírus é de duração limitada e não evolui para quadros mais graves. Houve casos raros de infecções graves por adenovírus que causaram hepatite em pacientes imunocomprometidos ou transplantados, por exemplo. No entanto, as crianças infectadas eram previamente saudáveis.
O surto pode estar relacionado às vacinas contra Covid-19 ou com a própria Covid-19?
Com base nas informações atuais, a grande maioria das crianças relatadas com a hepatite aguda não recebeu a vacina contra Covid-19, descartando uma ligação entre os casos e a vacinação neste momento. Em alguns casos relatados, foi detectada a presença do vírus SARS-CoV-2, e esta é uma das linhas de investigação junto com outras, como o adenovírus.
O que os pais podem fazer para proteger as crianças?
O mais importante é ficar atento aos sintomas, como diarreia ou vômito, e aos sinais de icterícia – quando a pele e a parte branca dos olhos ficam amareladas. Nestes casos, deve-se procurar atendimento médico imediatamente.
A Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) recomenda ainda o uso de medidas básicas de higiene, como lavar as mãos e cobrir a boca ao tossir ou espirrar para prevenir infecções, que também podem proteger contra a transmissão do adenovírus.
Fontes:
André Ibrahim David
Professor da Disciplina de Técnica Operatória e Experimental do Departamento de Cirurgia da Escola Paulista de Medicina - Unifesp/EPM. Outras informações: clique aqui
Maria Isabel de Moraes Pinto
Professora da Disciplina de Infectologia Pediátrica do Departamento de Pediatria da Escola Paulista de Medicina - Unifesp/EPM. Outras informações: clique aqui
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