População em situação de rua: a vida a céu aberto
Em memória às pessoas assassinadas no “Massacre da Sé”
A consternação e revolta desencadeadas pelo “massacre da Sé” impulsionaram a organização de pessoas em situação de rua que lutavam por direitos, unificando o Movimento Nacional da População de Rua.
Dia 19 de agosto é considerado o Dia Nacional de Luta da População em Situação de Rua em memória das sete pessoas que foram assassinadas e oito que ficaram feridas enquanto dormiam na Praça da Sé, na cidade de São Paulo, em 2004.
O que é a "situação de rua"?
Pessoas em situação de rua constituem um grupo heterogêneo que tem em comum a extrema vulnerabilidade social, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular. Habitam logradouros e outros espaços públicos, frequentemente nas imediações de centros comerciais devido à maior possibilidade de garantir a subsistência, ainda que de maneira precária. Compõe o mesmo grupo aquelas pessoas que querem e conseguem abrigo nos Centros de Acolhida/Albergue para pernoite.
Comerciantes, motoristas e pedestres que passam pelas ruas do Centro já não estranham os diversos pontos nas calçadas que servem de moradia provisória para grupos que carregam, de um lado para o outro, seus poucos pertences e se alojam pedindo esmolas. (Fonte: GUJSP)
A complexidade da vida nas ruas
A vida na rua é marcada por várias formas de violência, discriminação, privação de direitos humanos fundamentais, falta de privacidade, baixa autoestima, desesperança e limites para realizar o autocuidado. São condições precárias de sono, repouso, alimentação e higiene. A vida nessas condições impõe sofrimento e desencadeia processos de adoecimento físicos e mentais.
Ao contrário do que se pensa, o consumo de drogas não é praticado por todas as pessoas em situação de rua. Ainda assim, cabe entender que o uso de drogas por essas pessoas consiste em elemento socializador, fonte de prazer e automedicação, além de uma forma para se aquecer durante o frio, conseguir dormir e até mesmo viver em condições tão adversas. Não se trata de enaltecer o uso de drogas, mas de compreendê-lo como fenômeno social complexo e de saúde pública que carece de abordagens intersetoriais inteligentes. Associar pessoas em situação de rua usuárias de drogas à criminosas e esperar que o Estado policial apresente soluções tem como resultado a produção de mais violência e é medida inócua para lidar com os problemas relacionados ao consumo de drogas.
Implementação e monitoramento de Políticas Públicas
Quanto ao Estado, cabe, nesse dia de luta, ressaltar os avanços conquistados pelo Movimento Nacional da População de Rua, dentre eles a Política Nacional para a População em Situação de Rua, instituída pelo Decreto nº 7.053 de 23 de dezembro de 2009, que assegura alguns direitos, principalmente nas áreas de assistência social e saúde. Assim como a inclusão das equipes de Consultórios na Rua na Política Nacional de Atenção Básica, em 2011, que instituiu equipes multiprofissionais para o cuidado de saúde das pessoas em situação de rua. Tais políticas, somadas à dedicação e competência de muitos profissionais da assistência social e saúde, têm sido fundamentais para amenizar o sofrimento e atender algumas necessidades das pessoas em situação de rua. No entanto, essas políticas ainda estão apartadas de projetos governamentais robustos de moradia e emprego apoiado, sem os quais não se constroem alternativas para que as pessoas consigam reverter a situação de rua, se assim desejarem.
O Estado brasileiro sequer conhece as pessoas que vivem em situação de rua, uma vez que elas não são incluídas no Censo Demográfico. Tal inclusão estava sendo planejada, mas o Censo não tem sido uma prioridade do Governo Federal, que até o momento não assegurou recursos para a sua realização. Sem dados populacionais qualificados se perde potência para criação, implementação e monitoramento de Políticas Públicas.
Falta de dados confiáveis sobre população em situação de rua dificulta enfrentamento do problema (foto: Rovena Rosa/Agência Brasil) - Fonte: Agência Senado
A pandemia da Covid-19 para a população em situação de rua
Estarrecedor vivenciar que no curso da pandemia a gestão municipal de São Paulo continuou a investir em obras da chamada arquitetura hostil ou “antimendigo”, obras com o intuito de impedir ou dificultar a permanência de pessoas em situação de rua em determinados espaços. A mesma cidade que a cada inverno contabiliza pessoas mortas de frio.
A situação de rua sempre foi um fenômeno social complexo, mas a pandemia da Covid-19, que atinge mais gravemente o Brasil por omissões nas medidas sanitárias de controle do número de casos e atrasos na vacinação, foi reveladora e acendeu muitos sinais de alerta. Foi necessária uma pandemia para as gestões municipais criarem alternativas para higiene corporal das pessoas em situação de rua, para se avaliar as condições sanitárias e de infraestrutura de Centros de Acolhida e para se diagnosticar que o Poder Público não garante sequer as necessidades de alimentação das pessoas em situação de rua, que passaram fome com a interrupção de projetos assistenciais não governamentais.
Se havia qualquer dúvida, a pandemia da Covid-19 escancarou as desigualdades sociais do Brasil. Ficar em casa para evitar contaminação pressupõe ter uma casa! Trabalho remoto pressupõe ter trabalho! Seguir medidas de higiene pressupõe ter uma estrutura mínima para o autocuidado! Voltar ao normal pressupõe continuar vivendo em condições de vida precária para as pessoas em situação de rua!
Por isso precisamos desse Dia Nacional de Luta da População em Situação de Rua: em memória daqueles/as que se foram por violência, frio, abandono; em reconhecimento às conquistas das lutas já realizadas; em solidariedade às pessoas que lutam diariamente pela sobrevivência; em homenagem aos/às profissionais que lutam junto às pessoas em situação de rua; e como um convite para que outras pessoas se juntem à luta, pois ainda temos muitas batalhas para vencer.
Por Anderson da Silva Rosa
Professor adjunto do Departamento Saúde Coletiva da Escola Paulista de Enfermagem, Universidade Federal de São Paulo (EPE/Unifesp). Pró-reitor de Assuntos Estudantis (Prae/Unifesp) e coordenador do Programa de Extensão Universitária Com-unidade: saúde, assistência social, educação e direitos humanos e do Projeto Periferia dos Sonhos. Graduado em Enfermagem (Unifesp, 2004), mestre (2008) e doutor (2012) em Ciências pelo Programa de Pós-Graduação em Enfermagem (Unifesp). Tem experiência nas áreas da Saúde Coletiva, Saúde Mental, Enfermagem e Gestão, atuando principalmente nos seguintes temas: atenção primária à saúde, desigualdade social, pobreza urbana, processo saúde-doença-cuidado, situação de rua e gênero. Outras informações, clique aqui.
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