Se não pode vencê-los, junte-se a eles
A relação entre retrovírus e seus hospedeiros
A humanidade tem sido historicamente afetada por diversos vírus. Os vírus são agentes infecciosos que necessitam de uma célula hospedeira para se replicarem. Muitos deles causam doenças, impactando significativamente a saúde pública e a sociedade. As doenças virais variam em gravidade e podem desencadear surtos e pandemias. Os animais também são afetados de maneira significativa por uma ampla variedade de vírus. Isso pode ter implicações econômicas, no caso de animais de fazenda, ou afetar o equilíbrio do ecossistema, quando se trata de animais selvagens.
Os vírus são classificados de acordo com características moleculares, tipos de genomas, hospedeiros e outros fatores. Entre as classes de vírus, uma delas se destaca: os retrovírus. Esses vírus possuem a notável capacidade de integrar seu material genético ao genoma do hospedeiro, o que lhes permite escapar da detecção pelo sistema imunológico, por exemplo. Um dos retrovírus mais amplamente estudado e conhecido é o HIV (vírus da imunodeficiência humana), devido ao seu impacto na população mundial.
Os retrovírus infectam uma ampla variedade de mamíferos, incluindo espécies domesticadas, como gatos e roedores, e espécies selvagens, como macacos e primatas. No entanto, os retrovírus parecem não ser capazes de infectar cães. Apesar da grande população de cães espalhada pelo mundo, não existem relatos de cães infectados por retrovírus. Assim como os cães domésticos, canídeos selvagens, como raposas e lobos, também parecem ser resistentes.
Relacionamento entre retrovírus e hospedeiros A relação entre retrovírus e hospedeiros pode ser muito variada. Alguns retrovírus causam doenças graves, enquanto outros podem coexistir com seus hospedeiros sem causar nenhum dano. No caso do HIV, um retrovírus que causa a AIDS, a doença é causada pela destruição do sistema imunológico do hospedeiro. Já no caso do HTLV-2, um retrovírus que é encontrado em alguns humanos, a doença é geralmente leve ou assintomática. |
A resistência de canídeos é um fenômeno intrigante, mas não está claro qual mecanismo impede o sucesso de retroviroses em cães. Há um exemplo bem descrito de resistência a retrovírus envolvendo o HIV-1. Para infectar uma célula, o HIV-1 deve se ligar a dois receptores: o receptor CD4 e o co-receptor CCR5. No entanto, algumas pessoas possuem uma mutação no co-receptor CCR5. Essa mutação causa alterações, tornando o CCR5 uma barreira que impede o HIV-1 de invadir as células hospedeiras. Uma parte significativa da população de origem europeia possui essa mutação no co-receptor CCR5, o que é uma vantagem. Mas a maioria das pessoas não apresenta essa mutação, permitindo que o HIV-1 possa se disseminar.
Os cães devem possuir obstáculos significativamente maiores do que o caso do HIV frente ao CCR5 mutado. No entanto, a ausência de retrovírus em cães é uma exceção notável à regra. Retrovírus têm infectado vertebrados por milhões de anos e têm a capacidade de integrar permanentemente seu material genético nos hospedeiros, tornando-se retrovírus endógenos (retrovírus que se tornaram parte do DNA do hospedeiro). Como resultado, uma parte significativa de nosso genoma é composta por elementos genéticos derivados de retrovírus que infectaram nossos ancestrais distantes. Comparando-se os genomas, os cães possuem cinco vezes menos elementos retrovirais integrados em seu genoma do que humanos. Esses dados mostram que enquanto cães são resistentes, os humanos são bastante suscetíveis a retroviroses.
Embora o HIV seja um retrovírus com potencial para causar doenças graves, seu parente mais antigo, o vírus linfotrópico T humano (HTLV), praticamente não causa alterações clínicas significativas em indivíduos infectados. O HTLV possui dois tipos amplamente disseminados na população mundial: HTLV-1 e HTLV-2. A origem do HTLV-1 remonta a cerca de 90 mil anos atrás, enquanto o HTLV-2 tem uma origem ainda mais antiga, datando de aproximadamente 400 mil anos atrás. A infecção pelo HTLV-2 parece não causar impactos importantes em seus hospedeiros. Sua taxa de mutação é muito mais baixa do que os demais retrovírus humanos. Além disso, pacientes co-infectados pelo HIV-1 e HTLV-2 tendem a apresentar um curso clínico mais benigno do que aqueles infectados apenas pelo HIV.
Entre as populações indígenas da América do Sul foram detectados grandes índices de infectados pelo HTLV-2, em taxas muito maiores do que na população mundial, apontando que o vírus é endêmico nas populações nativas. Curiosamente, o HTLV-2 isolado de índios possui menor taxa de mutação, comparando-se com vírus isolados em residentes de regiões urbanas, fato que sugere tolerância e adaptabilidade a longo prazo em populações nativas.
Fonte: DIS/EPM
Um fato interessante que reforça o potencial de tolerância entre HTLV-2 e populações nativas, ocorre entre primatas africanos e suas variantes de vírus da imunodeficiência símia (SIV). Os macacos verdes africanos infectados pelo SIV não desenvolvem doenças similares à AIDS. Ao contrário do que se espera, os macacos infectados não apresentam uma resposta imune vigorosa. Até mesmo os filhotes não apresentam doença, mesmo não tendo um sistema imune maduro, como os adultos. Outras espécies, como os chimpanzés e gorilas possuem relações semelhantes de tolerância, já que estes hospedeiros infectados com o SIV não apresentam doença marcante.
Em resumo, é interessante notar que a relação entre agente infeccioso e hospedeiro pode seguir rumos completamente diferentes. De um lado os canídeos mostram-se imunes a retroviroses, do outro lado, nós humanos e outros primatas passamos a coexistir com retrovírus, como o HTLV-2 e o SIV, respectivamente, sem que haja prejuízo aparente. Portanto, se não se pode vencê-los, como fazem os cães, junte-se a eles, como temos feito ao lado de retrovírus durante nossa jornada evolutiva.
Texto elaborado por Dr. Luciano Rodrigo Lopes fundamentado em pesquisas científicas que exploraram a Ciência de Dados e a Bioinformática, realizadas no Departamento de Informática em Saúde da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp), em parceria com o Professor Jorge Simao do Rosario Casseb Brasil da Universidade de São Paulo - USP. Essas pesquisas culminaram em publicações (links abaixo) que abordam os aspectos evolutivos de retrovírus e sua interação com os hospedeiros.
Referências
Casseb, J; Campos JH; Lopes, LR. Are dogs not susceptible to retroviral infections? Animal Diseases 3, 31 (2023). https://doi.org/10.1186/s44149-023-00097-5
Casseb, J; Lopes, LR. Reflection About the Ancient Emergence of HTLV-2 Infection. AIDS Research and Human Retroviruses 38, 12 (2022). https://doi.org/10.1089/aid.2022.0019
Casseb, J; Janini, LM; Lopes, LR; Paiva, AM. Is the human T-cell lymphotropic virus type 2 in the process of endogenization into the human genome? Journal of Virus Eradication 6, 4 (2020). https://doi.org/10.1016/j.jve.2020.100009.