A luta contra o HIV é um desafio diário
O Dia Mundial de Combate à AIDS é uma data voltada para que o mundo una forças para a conscientização sobre a Síndrome da imunodeficiência adquirida. A data foi escolhida pela Organização Mundial de Saúde e é celebrada anualmente desde 1988 no Brasil.
Um desafio que constantemente sai da agenda, toda vez que um evento importante emerge, o HIV sai um pouco da agenda mundial. Aquecimento global, hepatite C, COVID-19. Claro que não devemos negligenciar as ameaças que constantemente emergem, mas não devemos esquecer desse desafio com o qual convivemos a quase meio século, que é a infecção pelo HIV e a Aids.
No geral as notícias são boas!
O que é AIDS?
Quando detectamos a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) no mundo no início dos anos 80, precisamente em 1987, éramos meros espectadores da catástrofe. A expectativa de vida que era tão limitada no início começou a aumentar conforme a ciência avançava e hoje, com satisfação observamos que a expectativa de vida das pessoas vivendo com HIV é igual ou superior a expectativa de vida de quem não é portador do vírus. Isso graças ao tratamento com antirretrovirais, que cada vez é mais eficaz e mais amistoso. Mesmo assim, após 40 anos da descrição da aids, não conseguimos uma vacina preventiva e nem curar as pessoas em uma escala grande.
Conseguimos neste momento detectar os desafios mais modernos para as pessoas vivendo com HIV. Um deles é a inflamação constante que acontece no corpo da pessoa, inflamação essa que é mitigada com o tratamento com os medicamentos do coquetel, mas não é completamente abolida. Essa inflamação, conhecida como micro inflamação, leva ao desgaste acelerado dos órgãos e tecidos de nosso corpo, propiciando um envelhecimento acelerado. A microinflamação, apanágio de doenças crônicas como diabetes, hipertensão arterial, insuficiência renal crônica, doenças reumatológicas e HIV é denominada na língua inglesa como inflamageing, ou inflamação que propicia o envelhecimento. Outro desafio moderno formidável é a cura da infecção pelo HIV.
AIDS tem cura?
Quando percebemos que nenhuma célula definitiva de nosso corpo é infectada pelo HIV, vislumbramos a perspectiva real da cura. De fato, alguns poucos pacientes foram curados com transplante de medula óssea, recebendo uma medula resistente ao HIV. Dessa forma, esses pacientes que precisaram de transplante de medula porque além do HIV tiveram cânceres hematológicos como leucemia ou linfoma receberam medula de doadores que não se infectam pelo HIV porque não tem nas suas células a porta de entrada para o vírus. De fato, 1% das pessoas têm esse defeitinho genético que as torna resistentes à infecção pelo HIV (não se infectariam) e a medula delas foram usadas para o transplante. O paciente de Berlim foi o primeiro curado, seguido do paciente de Londres e aguardamos os resultados de um terceiro paciente, o paciente de Dusseldorf. Isso foi considerado cura esterilizante do HIV, onde o vírus foi completamente eliminado do corpo humano. Não podemos fazer transplante de medula óssea com objetivo exclusivo de curar as pessoas do HIV posto que é procedimento de risco que pode levar à morte. Mas o conceito está provado! É possível a cura do HIV. Precisamos agora pensar em novas estratégias que possam ser aplicadas para um grande número de pessoas.
Avanços positivos
Observamos com alegria que os avanços atuais são enormes em relação ao controle dessa epidemia global causada pelo HIV. Já temos estratégias eficientes para eliminar a transmissão de mãe para filhos com o coquetel. Quando tratamos a mulher vivendo com HIV a sua carga viral fica indetectável eliminando realmente a chance de transmissão do vírus. A profilaxia pré-exposição (PrEP), impede a infecção das pessoas em risco de aquisição do HIV. As pessoas sob risco de aquisição do HIV tomam uma parte dos medicamentos que usamos no coquetel anti-HIV e isso diminui o risco de aquisição do vírus para próximo de zero. Como uma pílula anticoncepcional para impedir a gravidez. Estudos mostram também, que a forma mais eficaz de PrEP, graças à nanotecnologia, pode ser feita através de medicamentos injetáveis, com injeção intramuscular de aplicação mensal ou injeção subcutânea a cada seis meses. Claro que esses medicamentos injetáveis também têm sido utilizados para o tratamento convencional. Mais! O tratamento deixa a carga viral indetectável e as pessoas param de transmitir o vírus. Casais sorodiferentes, onde um dos parceiros vive com HIV e outro não, não precisam mais do uso de preservativos quando a carga viral está indetectável pelo uso dos medicamentos. É o assim chamado tratamento como prevenção.
Vacinas contra HIV/AIDS
Não contamos ainda com uma vacina preventiva. Obter uma vacina para uma infecção na qual não eliminamos o vírus espontaneamente é um desafio fabuloso. Mas não desistimos. Estratégias modernas como o uso das vacinas de RNA mensageira que foram desenvolvidas para a COVID estão sendo aplicadas. Nos últimos anos, foi detectado que algumas raras pessoas produzem anticorpos capazes de neutralizar (paralisar) praticamente todos as cepas de HIV que conhecemos. O primeiro desses anticorpos foi denominado VCR01. Pois bem, estratégias modernas conseguiram em modelos animais uma vacina que nos faria produzir especificamente o VCR01, sendo mais uma inovação promissora em vacinologia no campo do HIV.
Conseguir a cura para uma quantidade significativa de pessoas seria mais um componente para avanço da ciência e para conseguirmos um mundo futuro sem HIV. Observo que todas as pessoas vivendo com HIV desejariam não ser portadoras do vírus. Dessa forma, mais do que uma contribuição à ciência, curar as pessoas é o correto a se fazer.
Ambulatório de AIDs
Escola Paulista de Medicina - EPM/Unifesp Fax: (11) 5081-2821
Localização: R. Loefgreen, 1588 - Vila Clementino 03572-020 São Paulo, SP Telefone: (11) 5573-5081
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História da Aids
Primeiros indícios
Em 1982, eu era um estudante do segundo ano de medicina da Escola Paulista de Medicina na capital do estado de São Paulo. Durante o curso de anatomia patológica, coube ao meu grupo analisar a descrição de um caso clínico de um paciente que falecera dois anos antes no Hospital São Paulo, o Hospital Universitário desta Faculdade. O caso havia sido cuidadosamente escolhido pelos professores por conta da raridade e peculiaridade. Tratava-se de um paciente de 32 anos, solteiro, fotógrafo profissional que dividia seu tempo entre as duas cidades em que morava; Nova Iorque e São Paulo. O paciente falecera de insuficiência respiratória por uma infecção pulmonar na unidade de terapia intensiva da Disciplina de Pneumologia dois anos antes, em 1980. Ficara muito tempo internado e dependendo de respiradores artificiais, e imagino que essa última fase de sua vida tenha sido muito sofrida. A evolução era relativamente anormal para uma pneumonia adquirida fora do hospital, na qual a pessoa pode morrer rapidamente ou se curar em alguns dias com o tratamento apropriado. Neste caso não. A evolução foi lenta e a resposta ao tratamento com uma enorme gama de antibióticos, ineficaz. Os estudos de necropsia revelaram que o agente causador da pneumonia era o assim chamado naquela época Pneumocystis carinii (hoje Pneumocystis jirovecii), classificado na época como um protozoário e hoje como um fungo. Esse agente raro até então, causara essa infecção em um paciente com aparente diminuição da imunidade naquele momento. O mesmo apresentava uma diminuição expressiva das células sanguíneas, especialmente os linfócitos, que são células relacionadas ao que chamamos de imunidade celular. Peculiarmente, o paciente não apresentava nenhum câncer ou histórico prévio de diminuição da imunidade. Aparentemente um paulistano normal, de nível sócio econômico e cultural acima da média, e uma vida excitante dividida entre dois fervilhantes polos mundiais, duas cidades que nunca dormem. Se esse caso tivesse ocorrido alguns anos depois, a sua doença de base teria nome e sobrenome. Seria chamada de síndrome da imunodeficiência adquirida ou aids, do inglês Acquired Immunodeficiency Syndrome. Eu ainda não sabia, mas essa doença seria a motivação futura da minha curiosidade científica e ponto central da minha vida acadêmica exercida na mesma Escola Paulista de Medicina.
Uma nova síndrome
Em 5 de junho de 1981, após cuidadosa investigação epidemiológica em uma iniciativa até então sem precedentes, o Centro de Controle das Doenças dos Estados Unidos, baseado na cidade de Atlanta, decide divulgar o aparecimento de uma nova síndrome. Síndrome é a palavra usada em medicina para descrever um conjunto de sinais e sintomas de uma doença. Essa nova doença estaria acometendo indivíduos do gênero masculino previamente saudáveis que apresentavam consistentemente uma profunda diminuição da imunidade celular levando a uma epidemia de pneumonias pelo Pneumocistis carinni. Essa epidemia era caracterizada por 11 casos de pneumonia por esse agente. Isso mesmo, somente 11 casos. O conceito de epidemia não se baseia somente na quantidade exuberante de casos de uma determinada doença, mas sim no seu aspecto agudo, que leva a um incremento substancial e significativo do número de casos. Portanto, passava-se naquele momento de virtualmente “nenhum caso” para um número modesto, mas suficiente de ocorrências para que se levantasse um sinal de alerta exigindo uma investigação mais minuciosa por parte das autoridades médicas.
Imunidade Celular
Alguns outros pontos eram comuns nesses casos, como o fato de que essas pessoas apresentavam previamente a sua imunidade normal. Ou seja, a diminuição imunológica presente nessa síndrome fora adquirida, o que justificou o nome da doença. E mais, as pessoas afetadas eram homens que faziam sexo com homens, o que sugeria que o agente causal da doença poderia ser transmissível, talvez sexualmente, ou relacionado com algum comportamento comum restrito a esse grupo de pessoas. Logo a seguir, uma nova epidemia foi detectada nessa mesma população de pessoas; a epidemia causada por um câncer dos vasos sanguíneos chamado Sarcoma de Kaposi. Eram também poucos os casos de Sarcoma de Kaposi e algumas pessoas apresentavam concomitantemente a pneumonia pelo Pneumocistis carinii e Sarcoma de Kaposi. Obviamente, o fator que levava ao aparecimento dessas doenças era único: a perda da assim chamada imunidade celular, capaz de nos proteger de infecções e cânceres.
Luc Montagnier
Restava descobrir qual o agente causador da perda da imunidade. Achava-se que esse agente causador deveria ser um vírus pela característica da destruição das células mais importantes das defesas da pessoa com aids: os linfócitos T CD4+, que para simplificação, hoje chamamos de células CD4. Um grupo de elevada reputação científica liderado pelo cientista americano Robert Gallo apostava que esse agente seria um retrovírus. O grupo sob a liderança do Dr. Gallo já havia isolado outros retrovírus humanos importantes como o HTLV-1 e HTLV-2 que causam leucemias, linfomas na pele e doenças neurológicas.
Esse grupo de pesquisa trabalhava com afinco em amostras de pessoas com aids para isolamento e caracterização do agente causador dessa síndrome mortal. A primeira descrição do HTLV-1 ocorreu de fato em 1980. Outros grupos de pesquisa científica também estavam nessa corrida, como o grupo liderado pelo pesquisador Jay Levy da Universidade da Califórnia, em São Francisco, nos EUA, e o grupo liderado por Luc Montagnier do Instituto Pasteur, em Paris. Uma das maiores confusões da história da ciência estaria então para acontecer.
Françoise Barre Sinoussi
Em meados de 2008, Françoise Barre Sinoussi estava no Vietnam fazendo o que tinha sido a sua atividade nos últimos anos: uma atividade social relacionada a pessoas infectadas pelo HIV no sudeste da Ásia. Uma das pessoas locais e colega de trabalho veio correndo em sua direção e ofegante lhe disse: “Madame Françoise, Madame Françoise, a senhora ganhou o prêmio Nobel!” “Como?!” perguntou ela com espanto. “É verdade, é verdade”, respondeu a pessoa que trazia a notícia, “está na televisão!”Era verdade. Naquele ano, o prêmio Nobel de Medicina estava sendo dividido entre Françoise Barre Sinoussi e Luc Montagnier pela descoberta do HIV que ocorrera muitos anos antes, em 1983. Ela verdadeiramente conduzira de forma braçal todo o trabalho laboratorial para isolamento do vírus e o mundo prestava a ela essa homenagem naquele momento.
Em 2008, Françoise era membro eleito do conselho governamental como uma das representantes da Europa da Sociedade Internacional de AIDS (IAS), a mais importante sociedade de profissionais que trabalham em prol da resolução dos problemas relacionados à infecção pelo HIV. Ela relatara a história de como descobrira que ganhara o prêmio Nobel em uma reunião anual do conselho governamental da IAS.
Prêmio Nobel
Em 1983, durante a corrida pelo isolamento e caracterização do agente causador da aids, o Professor Luc Montagnier entrara em contato com o pesquisador do Instituto Nacional de Saúde americano, o Professor Robert Gallo, para comunicar que provavelmente a sua equipe identificara o tão procurado vírus da aids. O Dr. Gallo confirmou que também isolara o vírus e solicitou que o Dr. Montagnier lhe enviasse uma amostra do paciente em que Montagnier isolara o vírus da aids. Era um gânglio linfático que havia sido obtido por biópsia. Com essa amostra poderia se confirmar que se tratava do mesmo agente causador das doenças nos dois continentes diferentes. Dr. Montagnier enviou a amostra aos EUA e foi confirmado: tratava-se do mesmo retrovírus. A divulgação inicial desse fato foi feita em nome dos dois grupos científicos no periódico científico epidemiológico do Centro de Controle das Doenças de Atlanta, periódico este conhecido como MMWR (Morbidity and Mortality Weekly Report).
Louros e reconhecimentos foram divididos durante muito tempo, sendo que o presidente americano Ronald Reagan e o primeiro ministro francês Jacques Chirac assinaram uma declaração confirmando que os dois grupos de pesquisa eram codescobridores do agente causador da aids. Alguns meses depois, o grupo de pesquisa situado na Universidade da Califórnia, em São Francisco, liderado pelo imunologista Jay Levy, também descrevia um vírus que eles haviam isolado como sendo o causador da aids.
O grupo francês batizara o vírus isolado de vírus linfoadenotrópico, ou LAV e a variante viral foi chamada de B3, enquanto o grupo americano liderado por Robert Gallo chamara o vírus causador da aids de HTLV-3, sendo que a variante viral isolada foi chamada de HXB2 e o grupo de São Francisco, de Jay Levy, batizara o vírus de Vírus Relacionado à aids ou ARV, sendo que o isolado viral de São Francisco foi posteriormente chamado de SF1.
Com o passar do tempo, muitos isolados do HIV tiveram o seu genoma caracterizado pelo sequenciamento genômico e para surpresa da comunidade científica alguns detalhes foram revelados. O primeiro deles era o fato de que existe uma variação enorme entre diferentes isolados do HIV, em decorrência de sua enorme diversidade genética. A segunda foi de que os vírus isolados pelos grupos de Montagnier e Gallo eram idênticos! E mais, esse vírus possui uma assinatura única do genoma que codifica a região do envelope do vírus, que é uma assinatura nunca mais encontrada em outro HIV caracterizado. Tratava-se de uma inserção de 6 nucleotídeos na região conhecida como hipervariável número 3 ou simplesmente região V3. Ficou claro que se tratava do mesmo vírus proveniente do mesmo paciente francês. Este vírus ainda pôde ser recuperado e seu perfil confirmado a partir do gânglio linfático em poder do grupo do Instituto Pasteur. Já o Dr. Gallo justificava o fato com a (improvável) possibilidade de a amostra enviada a seu laboratório pelo grupo francês anos antes, ter contaminado as culturas do laboratório americano, tendo assim causado essa confusão. O governo americano por algum tempo apoiou a confusa história do Dr. Gallo, já que muito dinheiro estava envolvido na propriedade intelectual que possibilitava o uso do vírus isolado em testes diagnósticos para que se detectassem as pessoas infectadas pelo HIV.
O comitê responsável pela distribuição do prêmio Nobel de 2008 provavelmente levou toda essa história em consideração e, como dito acima, o Nobel de Medicina foi dividido entre Luc Montagnier e Françoise Barre Sinoussi, pela descoberta do HIV, e por Harald zur Hausen, pela descoberta do papel do Vírus do Papiloma Humano (HPV) na gênese do câncer de colo de útero.
LAV, HTLV-3 e ARV, nomes diferentes para o mesmo agente causador da aids e vários egos científicos envolvidos nos primeiros anos após a identificação do vírus. Finalmente em maio de 1986, um comitê taxonômico internacional decidiu que o nome oficial seria a partir de então HIV, abreviação do inglês Human Immunodeficiency Virus.
Por Ricardo Sobhie Diaz
Professor Associado e Livre Docente, Chefe do laboratório de Retrovirologia da Disciplina de Infectologia da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo - EPM/Unifesp. Mais informações: clique aqui
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