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Coronavírus: a Ameaça (Des)conhecida
Coronavírus: A Ameaça (Des)Conhecida
Em 2002, a província chinesa de Guangdong, no sul da China, tornou-se o cenário de um surto de casos de pneumonia atípica. Dentre os indivíduos doentes, grande parte manteve algum tipo de contato com animais silvestres, seja em mercado de animais ou em restaurantes. Dessa forma, suspeitou-se que a origem do surto fosse zoonótica. Logo, a doença que ameaçava se espalhar foi denominada de “síndrome respiratória aguda grave” ou SARS (do inglês, severe acute respiratory syndrome). Em pouco tempo a ameaça se tornou realidade e 29 países reportaram casos de SARS em meio à sua população. Na medida em que as pesquisas científicas avançaram, o agente causador da SARS foi identificado, um coronavírus (SARS-CoV). Este coronavírus era pouco similar aos demais já conhecidos até aquele momento. A partir daí, pesquisas apontaram que o morcego era o reservatório natural de coronavírus relacionados ao SARS-CoV. Outros animais foram identificados como hospedeiros intermediários – como a civeta e cão-guaxinim, por exemplo. A vigilância epidemiológica passou a investigar continuamente a presença coronavírus em animais silvestres.
Em pouco tempo, dados epidemiológicos mostravam um aumento do número de casos de SARS, especialmente na China e em Hong Kong. Cada indivíduo infectado pelo SARS-CoV contaminou outros 2.7 indivíduos. Episódios envolvendo indivíduos super transmissores (super spreaders) do SARS-CoV foram reportados em Hong Kong e favoreceram a transmissão do vírus. A taxa de mortalidade do surto de SARS foi estimada em 11% (Chan-Yeung and Xu 2003). No total, pouco mais de 8.400 indivíduos tiveram suas vidas abreviadas durante a epidemia de SARS. Idade e comorbidades, como diabetes e doenças cardiovasculares, foram considerados fatores de risco para o desfecho ruim da SARS. Diferentes tipos de sequelas (metabólicas, neurológicas, etc) foram identificadas ao longo dos anos que se sucederam.
As estimativas em relação ao surto de SARS foram preocupantes. Mas a partir daí os números gerados pela vigilância epidemiológica começaram a rivalizar com as estimativas econômicas. Saúde versus economia. Somente na China, o impacto econômico foi estimado em US$ 25.3 bilhões (Hai et al. 2004). Perdas foram significativas, embora o impacto econômico pudesse ter sido ainda maior, considerando que uma paralisação sistêmica ocorresse devido a um aumento do número de casos.
O surto de SARS foi um evento complexo, pois afetou todos os setores de sociedades de diversos países gerando alertas globais. A crise sanitária promovida pelo SARS foi bem documentada, especialmente em artigos científicos nas áreas de epidemiologia, de clínica médica, de virologia, dentre outras. Diversos estudos alertaram que a relação próxima entre animais silvestres e humanos poderia causar novos surtos de coronavírus. Em uma extensa revisão feita por pesquisadores da Universidade de Hong Kong sobre diversos aspectos da SARS, a ampla detecção de coronavírus similares ao SARS-CoV em animais silvestres foi considerada uma bomba relógio (Cheng et al. 2007).
Uma segunda amostra do potencial do impacto do coronavírus ocorreu no Oriente Médio, um novo surto - MERS (do inglês Middle East respiratory syndrome). A relação entre os infectados e o contato com camelos permitiu rastrear o hospedeiro do coronavirus – MERS-CoV. Mais um surto de coronavirus associado a animais. Aproximadamente 35% dos pacientes infectados pelo MERS-CoV morreram.
A disseminação do SARS-CoV e MERS-CoV decorreu devido ao modo de vida e às praticas econômicas que envolvem exploração animal indiscriminada. Em regiões de diversos países a economia se baseia na criação, venda e consumo de animais silvestres, que chegam até mesmo a serem incluídos como ingredientes de substâncias medicinais alternativas ou curandeirismo. Mesmo com tantos fatores apontando os problemas sobre a exploração animal no contexto sanitário, as décadas se passaram e pouco avanço em relação a vigilância, combate ou medidas regulatórias aconteceram.
Com o surgimento da pandemia de COVID-19 (do inglês, Coronavirus Disease-19), nota-se que o conhecimento e as lições adquiridas com a SARS e MERS ao longo dos anos não foram devidamente aplicados. Antes de tudo, apesar das pesquisas e alertas sobre a possibilidade de novos surtos por coronavirose, não houve resposta à altura para evitar o surgimento da pandemia. A origem do SARS-CoV-2, o agente causador da COVID-19, ocorreu em cenário similar ao surto de SARS, também no sul da China. Exploração animal e agressão ao meio ambiente foram fatores determinantes para o surgimento da pandemia de COVID-19. Logo, foram identificados os hospedeiros que participaram da cadeia de transmissão do coronavírus aos humanos. O Departamento de Informática em Saúde da Unifesp, por meio de um grupo de bioinformatas, apontou o pangolim como o hospedeiro intermediário na transmissão do SARS-CoV-2 aos humanos (Lopes, de Mattos Cardillo, and Paiva 2020).
Com a pandemia estabelecida, atrasos na tomada de medidas eficazes contra um vírus cujo potencial já era familiar, favoreceram a disseminação voraz do SARS-CoV-2. Além disso, a expectativa em alcançar a imunidade de rebanho, adotada em algumas localidades, deu liberdade ao coronavírus para ampliar o número de hospedeiros e ainda gerar variantes com maior potencial infeccioso. Em pouco tempo, o SARS-CoV-2 atingiu o mundo todo. Similarmente ao SARS, idosos e diabéticos tem pior curso clínico da COVID-19. O SARS-CoV-2, junto com o diabetes mellitus, eleva o desequilíbrio metabólico e agrava a condição clínica do paciente, conforme foi apontado em estudo realizado no Departamento de Informática em Saúde (Lopes 2021).
Por fim, a escusa em seguir as orientações científicas e a preferência em preservar o funcionamento de setores econômicos em vez priorizar a saúde coletiva, tem transformado partes do mundo em um cenário desastroso. Medidas de isolamento social e o uso de proteção individual seriam fatores capazes de controlar a pandemia. Porém, tem se observado dificuldades em aplicar tais medidas de forma efetiva na maioria dos países.
A pandemia de COVID-19 surpreendeu a população mundial e as autoridades em diferentes instâncias. No entanto, há quase duas décadas o coronavírus vem se mostrando um patógeno com potencial a causar uma pandemia, originando-se a partir do contato próximo com animais diversos. Numerosos alertas vêm sendo dado pela comunidade científica desde os surtos de coronavírus nas décadas passadas (SARS e MERS). Por esse motivo, deveríamos estar melhor preparados para lidar com a pandemia de COVID-19.
Referências
Chan-Yeung, Moira, and Rui-Heng Xu. 2003. “SARS: Epidemiology.” Respirology (Carlton, Vic.) 8 Suppl:S9-14. doi: 10.1046/j.1440-1843.2003.00518.x.
Cheng, Vincent C. C., Susanna K. P. Lau, Patrick C. Y. Woo, and Kwok Yung Yuen. 2007. “Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus as an Agent of Emerging and Reemerging Infection.” Clinical Microbiology Reviews 20(4):660–94. doi: 10.1128/CMR.00023-07.
Hai, Wen, Zhong Zhao, Jian Wang, and Zhen-Gang Hou. 2004. “The Short-Term Impact of SARS on the Chinese Economy*.” Asian Economic Papers 3(1):57–61. doi: 10.1162/1535351041747905.
Lopes, Luciano Rodrigo. 2021. “Functional and Tissue Enrichment Analyses Suggest That SARS-CoV-2 Infection Affects Host Metabolism and Catabolism Mediated by Interference on Host Proteins.” Brazilian Journal of Microbiology. doi: 10.1007/s42770-021-00497-0.
Lopes, Luciano Rodrigo, Giancarlo de Mattos Cardillo, and Paulo Bandiera Paiva. 2020. “Molecular Evolution and Phylogenetic Analysis of SARS-CoV-2 and Hosts ACE2 Protein Suggest Malayan Pangolin as Intermediary Host.” Brazilian Journal of Microbiology. doi: 10.1007/s42770-020-00321-1.
Fonte da imagem de destaque: Fiocruz Imagens
Redator: Luciano Rodrigo Lopes
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